domingo, 8 de novembro de 2015

Não sou Jubarte e Moby-Dick não é baleia

Num dia desses fui ver as baleias
Elas fazem esta travessia desde há tempos
Eu mesma nunca tinha ido avistá-las
Todo ano dizia:
- Este ano vou ver as Jubartes!
Passava julho, vinha agosto,
Setembro, só flores e bons ventos,
em outubro faltavam sábados e domingos.
Pronto. Era o fim do período de baleias.
E assim seguia.

Enfim, fui ver as baleias
Uma hora de estrada, ao nascer do sol
Um bate papo com um biólogo e a descoberta:
Moby-Dick não era baleia!
Jubartes são baleias.

Antes de abordar,
regras de navegação.
Eram tantas e tão detalhadas ...
Muitos desistiram.
É que o mar estava agitado.
Sobre a escuna, disse o marinheiro guia:
- As baleias já conhecem nosso barco.
Elas são curiosas. Virão até nós.
Já no mar, grande vozerio e alaridos
Frenesi do animal homem.
Ansiavam pelo borrifo.
Indicador da posição das jubartes e suas crias.

Nos movíamos em círculos
entre a Praia do Forte e Guarajuba
Visões do grande animal
possuíam os olhares.
Uns buscavam transfigurar-se
Outros, assentados no solo quente
da juventude,
esperavam aventuras à moda de Godon Pym.

A movimentação lembrava manobras de caça:
Localizar o borrifo. Indicar o rumo ao timoneiro. 
Pôr a escuna em movimento. Rivalizar com as ondas contrárias
Duas, talvez três fêmeas com os filhotes se deixaram ver.
Seguimos uma dupla, depois outra, depois ...
Enfim biólogo e ativista anunciaram: 
- Hoje só há fêmeas com filhotes.
Estão indo em direção contrária ao barco.
Não querem nossa companhia.
Nas palavras do marinheiro:
- O vento levantou!

Não sou Jubarte
e não sou fã de Capitão Ahab.
Não sou Jubarte
mas também fiz travessias.
Em algumas, grandes ondas marinhas me apanharam.
Agora já estou em terra firme outra vez
Mas quando o vento levantou ...

ALLAN POE, Edgar O Relato de Arthur Gordon Pym. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Não sou José e nenhum anjo torto me disse nada


Meu amigo Fran
escreveu sobre minhas postagens
em devir animal.
Tão delicado é receber palavras escritas de amigos.
É sempre um generoso experimento
receber impressões daqueles que nos leem.

A distância produz um tipo de intimidade
suave, generosa, confessional,
quase incondicional.
Só consigo entender a palavra
incondicional assim,
experimentando palavras escritas
trocadas entre amigos.

Minha amiga de palavrórios
morreu. Ró querida nos deixou.
Levou consigo palavras
que animavam nossas
brincadeiras poéticas.
Ao menos pude dedicar-lhe
uma elegia.

E agora?
Não sou José e nenhum
Anjo torto me disse nada.
Vou ficar mesmo é com Adélia Prado.
- Dor não é amargura. Mas o que sinto escrevo. 


PRADO, Adélia. Com Licença Poética. In: Bagagem. Record: Rio de Janeiro/São Paulo, 2009. 


quarta-feira, 8 de abril de 2015

para Roseane Viana



Uma amiga que mora em Heidelberg
luta com monstros que crescem nela.
Não são bichos bichos nem bichos homens.
Também não são mandacarus.
São mortais.
Não gostam de viver ou deixar viver.
Não deixam sol nascer ou chuva brotar.
Só dizem não.
Seria bom se eles soubessem ler.
Freud e Nietzsche dariam outras perspectivas a eles.
Tertuliano também viu crescer em si um bicho.
Mas ele era bicho de fazer viver.
Assim, bicho de enlarguecer o espírito.
Um Albatroz Azul.
Pouco a pouco Tertuliano, bicho homem,
quis saber como é ser um Albatroz Azul.


João Ubaldo Ribeiro. O Albatroz Azul. 2009.

Sebastião Salgado e a força dos bichos todos

Num dia desses fui ao cinema.
Havia promessas na escolha:
A amizade de um homem e uma baleia,
Brincadeiras de roda com leões marinhos,
Um bicho que tem mão de gente e é mais antigo que toda gente -
um lagarto de galápagos
e morsas dentuças.
O Sal da Terra de Wim Wenders e Juliano Salgado
faz expandir nossos sentidos
com bichos marinhos e outros grandes
monstros terrestres.
Ressecam nossas retinas
com a triste sina da natureza humana.
Matar uns e outros:
bichos homens, bichos bichos, vida verde, toda a vida, a vida toda.
Estranha e impressionante é a natureza humana.
E Ela são muitas.
Sebastião Salgado deixa que contem
a história de desencantamento de um homem
por si e pela cultura de homens.
Terra seca. Fim de tudo.
Sebastião Salgado deixa que seu filho,
seu bicho homem,
conte do reencantamento
que os bichos todos fizeram brotar nele
e na terra de onde ele mesmo nasceu.
Sal da Terra
Um filme para ver de novo.
Olhos D'Água
Documento daquilo tudo que somos
Horror e força criadora.
Homens de Cultura.


O Sal da Terra. Documentário. Wim Wenders e Juliano Salgado (Brasil/França, 2014)

De tanto regurgitar Jonas deixei de ser baleia

Teve um tempo
que pensava ser um animal
lento, pesado
e com gosto por longas travessias.
Um tipo de baleia bem grande
com aparições marcadas em
latitudes e longitudes precisas.
Mas o bom mesmo era o ruminar do ser baleia.
Isto sim era bom.
A digestão lenta para o viver comum faz tão bem.
Depois as palavras voltaram e de tanto regurgitar
Jonas deixei de ser baleia.
Estranha e impressionante é a natureza humana.
E Ela são muitas.
Vez por outra meu ser baleia  faz aparições,
Um corpo para os sentidos feitos d'água.

PRADO, Adélia. A faca no peito. Rio de Janeiro/São Paulo: 2007.

Cresce em mim o Sertão

Quando chove
me encho de ânimo.
Já gosto de tudo.
E fico assim
Verde verde.
Vai ver que cresce em mim o sertão!

Quando as águas ficam fio

Em dias como hoje penso:
vou morar num lugar que chova mais.
Quando ela chega
fico cheia de vontades
Quero cozinhar, escrever, costurar, contemplar
o verde, as árvores e o mar.
Depois o sol e a vida se impõem
e eu seco outra vez.
Deve ser isto.
Esqueço que tem chuva e aceito o eterno verão deste mar.
São os sentidos que vão longe em busca d'água
E me deixam pra lá.
Estranha e impressionante é a natureza humana.
E Ela são muitas.
Se expande por sobre tudo quando a chuva vem.
Ou mergulha no ser ficcional que somos
quando as águas ficam fio.


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Meus poemas têm querer em rabo de lagartixa

Hoje fiz um poema
Não é poema não
São retalhos que caíram
quando eu lia Adélia Prado.
Decidi: vou comprar um violão
O meu ficou para trás.
Meu pai, minha mãe
Eles também se foram.
Gosto da frase:
'O que quer que seja o amarelo'
Poesia tem disso.
Intimidade com processos
físico químicos.
Sim. E é assim que se escreve
na nova ortografia?
Físico químicos!

Tive um sonho horrível
Insetos caminhavam em meu corpo
e não eram centopeias.
No escuro. Cela fechada.
Espera por tudo.
Hoje escrevo ao sol
na praça aqui da rua.
A praça?
Arrasada. Terra seca. Grama em palha.
Mas tem dois balanços.
Gosto de andar de balanço.
Na escola eu andava em pé
e batia corrida: ganhava quem chegava mais alto.
Com o tempo 'o medo virou Deus e Senhor'.

'Ter um corpo é como fazer poemas'
Espero que os meus cresçam como
rabo de lagartixa.
A cada susto um novo!
Os gatos aqui de casa
não deixam lagartixa crescer
Imagine ter rabo pra perder!
Tem bicho que é assim
Mata o corpo da gente.
O que cresceu em mim
foi arrancado.
Estou mais pra gato do que lagartixa.
Meus poemas
têm querer em rabo de lagartixa.
Gostam de nascer outro e de novo.
Adélia Prado gosta de borboletas e centopeias

Prado, Adélia. A faca no peito. Rio de Janiero/São Paulo: Record, 2007.